Memória e patrimônio em Minas Gerais: o caso da Companhia Industrial Itaunense

Mariana Moreira
9 min readMay 6, 2020

*Este artigo é a síntese bastante concisa de uma Dissertação de Mestrado, de título homônimo, defendida em 2014 pela UFMG. Para aprofundamento dos resultados completos, discussões, materiais levantados e fontes, pode-se consultar o texto na íntegra, no seguinte link: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-9UQS2N

A produção têxtil é praticada em Minas Gerais desde o início da colonização. Inicialmente artesanal, foi uma das primeiras atividades a industrializar-se no estado. A Companhia Industrial Itaunense se implantou em Itaúna no ano de 1911, e logo conquistou grande relevância econômica e social. Após sua desativação, a fábrica entrou em processo de arruinamento, sem deixar de manter-se fortemente presente na memória da população local. Os laços que permitem analisar sua Paisagem Industrial, isto é, suas estruturas remanescentes em avaliação física e no modo como se inserem na área urbana, como suportes materiais de memórias que contribuem para a construção de identidades e da visão que se tem do passado, são o tema deste trabalho.

A amplitude (espacial, temporal e cultural) da influência da Itaunense é ilustrada por inúmeras histórias contadas por moradores e ex-moradores sobre o envolvimento da fábrica em diversos aspectos de suas vidas. Histórias que foram ponto de partida para a investigação da dinâmica interna da fábrica e de suas implicações no contexto da cidade. Sua forte presença na memória social da cidade lhe garantiu a integração ao Patrimônio Cultural de Itaúna.

Entendendo a paisagem em seus aspectos físicos e humanos, uma dupla perspectiva se mostrou adequada: a utilização de múltiplas fontes de pesquisa e a adoção de uma abordagem interdisciplinar. Assim, conciliando Antropologia e Arqueologia, a pesquisa considera elementos materiais, imateriais, documentais, bibliográficos e a memória de diversos sujeitos envolvidos com a realidade em estudo. Foram realizadas atividades de campo nas estruturas da fábrica, bem como pesquisa com fontes orais, iconográficas e escritas (documentais e bibliográficas), além de dados obtidos via geoprocessamento.

Parte 1: Passado (História econômica e social)

Em 1911, dissidentes da Santanense (outra indústria têxtil, surgida vinte anos antes) fundaram a Companhia Industrial Itaunense, dedicada à fiação e tecelagem de panos, e movida a eletricidade. Seus sócios construíram uma barragem que incrementou o abastecimento de água para a população. Naquele ano, a urbanização intensificou-se, criando uma paisagem social muito distinta da que existia até então. Com apenas dez anos de emancipação, Itaúna possuía duas indústrias têxteis, energia elétrica e transporte ferroviário — elementos essenciais para o desenvolvimento urbano.

Em 1918, a empresa criou o Clube Itaunense, atual Automóvel Clube, que realizava diversas atividades de lazer e de motivos religiosos para a população. Em 27 de setembro de 1924, via lei municipal, a Itaunense tornou-se concessionária do serviço de força e luz do município, passando a ser responsável não só pela produção da energia elétrica, como também por sua distribuição, o que corresponde a um processo de privatização.

Até a década de 1940, Itaúna contava apenas com um grupo escolar. Diante desta situação, alguns moradores se uniram para fundarem o curso ginasial, entre eles dois diretores da Itaunense. Como resultado da iniciativa, foi criado o Colégio Sant’Ana, em 1943. A obra contou com o apoio financeiro de um dos sócios-fundadores da Itaunense.

Na década de 1950, mais duas usinas foram construídas. Até hoje, o abastecimento de água tratada para o município de Itaúna está vinculado às barragens (gerenciadas pela Itaunense e pela Santanense em conjunto) que controlam o fluxo de água para as usinas. Foram “anos gloriosos”, em que uma cada vinte pessoas na cidade era funcionária da empresa.

A década de 1960 foi marcada pela comemoração do cinquentenário da Itaunense, com celebrações e festividades relacionadas à data. Havia um sentimento de orgulho muito grande entre os trabalhadores da fábrica, pois, naquele momento, trabalhar na Itaunense representava status social, o que tinha como consequência, por exemplo, a facilidade de obtenção de crédito em diversos estabelecimentos comerciais locais. A Itaunense promovia ainda exposições com exemplares do maquinário e dos diversos tipos de tecidos produzidos na fábrica para conhecimento do público em geral. Em relatos orais, há menção à curiosidade demonstrada por crianças, jovens e adultos em relação ao interior da fábrica e ao processo produtivo, que durante o cotidiano eram acessíveis apenas para os funcionários da fábrica. A Itaunense participava da vida social de Itaúna de diversas formas, inclusive como homenageada em um bloco de carnaval do ano de 1979.

Diante da ausência de competitividade e da redução do papel do Estado de forma abrupta na década de 1990, a indústria têxtil teve taxa de crescimento negativa. Em 30 de dezembro de 1999, após algumas tentativas com modelos administrativos importados, a Itaunense requereu autofalência. A partir de então, o patrimônio foi sendo liquidado para saldar as dívidas. As pendências trabalhistas foram as primeiras a serem honradas.

Em 2007, o foco da empresa passou a ser buscar a recuperação, a partir da entrada de um novo grupo de acionistas. Paralelamente ao processo de falência, houve a criação de uma cooperativa visando dar continuidade às atividades de tecelagem (fiação) na Unidade I. Possuía um aspecto social na cidade, dando contribuições a diversas instituições beneficentes como a APAE e a APAC. Era o símbolo de um retorno dado à população que não se beneficiava mais dos empregos gerados pela fábrica. Começou bem, mas logo muitos clientes partiram para outras fibras, como o poliéster, que era mais barato. Em 2013 foi dado baixa na cooperativa.

Historicamente, não houve o estabelecimento claro de fronteiras físicas e simbólicas entre a Itaunense e o município de Itaúna. A regulação social exercida pela fábrica não se restringiu aos operários ou ao tempo do trabalho: abrangeu os familiares dos operários e a população em geral, incluindo os momentos de não-trabalho, por meio de atividades religiosas, esportivas, festivas ou de lazer. Tomou para si atribuições de responsabilidade do poder público, como o abastecimento de água e o fornecimento de energia elétrica.

Esta influência da Itaunense muitas vezes se manifestou por meio das ações paternalistas de seus proprietários dirigentes — cujo reconhecimento se reflete na nomenclatura das ruas e no discurso de inúmeros itaunenses. Os dirigentes e proprietários da Itaunense atuaram no desenvolvimento de dois segmentos industriais da economia (tecelagem e siderurgia) e também na área social. Suas ações despertaram sentimentos de gratidão, fascínio e admiração.

Parte 2: O presente (Memória e Patrimônio)

Após a desativação da Itaunense, a paisagem se transformou. Elementos que tiveram grande expressividade nas narrativas sobre a fábrica em movimento não existiam mais — os sons das máquinas não podiam mais serem ouvidos; o cotidiano não era mais regulado pelo toque da sirene; não havia mais a grande movimentação de operários no momento da troca de turnos. Excetuando-se o setor de fiação, todo o maquinário foi vendido e/ou retirado dali. Sem o uso, o processo de arruinamento teve início.

No campo da memória afetiva, são inúmeras as visões e percepções relacionadas à Itaunense, tanto entre ex-funcionários quanto na população. De forma geral, há um aspecto amplamente presente no discurso: a relevância econômica, histórica e social da Itaunense. Em muitas entrevistas, fica evidente o forte vínculo afetivo e emocional estabelecido com a fábrica. Há muitas menções à fábrica “como uma família” e ao “título” de “Mãe de Itaúna”, muito proferido à época do funcionamento.O mesmo acontece em relação aos ex-dirigentes. Suas características pessoais e morais são exaltadas, bem como as ações paternalistas que praticavam em Itaúna. Em entrevista, o ex-funcionário Geraldo Gustavo afirma que a empresa era como “uma segunda família”.

Parte da formação da ideia de Patrimônio Cultural está associada à constatação do valor de um bem cultural para a formação da identidade e memória de uma determinada comunidade. No caso da Itaunense, isso está confirmado no tom fortemente nostálgico dos relatos. Diversas narrativas mencionam a saudade “daquela época”. Dona Conceição, em 14 de outubro de 2011, escreveu no Portal de Notícias de Itaúna que tinha “muitas saudades daquela época, lembro perfeitamente do cheiro da tinturaria, saudade”. Algumas narrativas vão além, falando explicitamente da fábrica como Patrimônio Cultural que, como tal, merece ser preservado. O Sr. Elmo Nédio escreveu no mesmo portal que o monumento “deveria ser tombado e preservado, do jeitinho que é, tamanha a importância da Itaunense para nossa cidade e para que possamos continuar vendo aquele cantinho”.

O CONDEMPACE — Conselho Deliberativo Municipal do Patrimônio Cultural, Artístico e Ecológico de Itaúna/MG, composto por representantes do poder público e da sociedade civil, tem trabalhado no sentido de reconhecer formalmente a relevância histórica e social da Itaunense, materializada pela Unidade I, por meio do processo de tombamento. Em 10 de julho de 2013 foi expedida a Notificação de Tombamento aos proprietários de alguns bens como prédios e chaminés. Apesar de se tratar de um grande avanço, o tombamento não é suficiente para salvaguarda efetiva das estruturas e da memória a ela associadas: recentemente parte das estruturas que compõem a Unidade I foi demolida.

A demolição das estruturas é fomentada, principalmente, por interesses econômicos. Em junho de 2014, a parte das estruturas da Unidade I que foram compradas para construção de um Shopping foi destruída pela Ferreira Miranda Construtora. A imagem da destruição foi marcante. O gigantesco amontoado de entulhos impressionou a todos que passaram por ali. Junto aos escombros, pessoas recolheram ferragens para vendê-las. Diante da cena, o vigia da parte remanescente da Unidade I afirmou: “essa fábrica matou a fome de tanta gente e ver desse jeito aí dá tristeza demais”.

Duas possibilidades têm sido levantadas no sentido de tentar conciliar o empreendimento com a preservação da memória. Uma é a preservação da chaminé dentro da estrutura arquitetônica do shopping, e outra é a criação de um memorial na sua área interna. Entretanto, estas ações colocadas isoladamente não são suficientes para que o conhecimento a história da fábrica seja transmitido para as futuras gerações. A efetiva preservação da memória da fábrica só pode ser alcançada por meio da adoção de programas de comunicação e educação patrimonial junto à população.

As discussões entre poder público, inciativa privada e população permanecem sendo feitas e o caminho das estruturas remanescentes da Unidade I da Companhia Industrial Itaunense continua em aberto.

Considerações finais

Fica nítido que a influência da Itaunense em funcionamento ultrapassou os muros da própria fábrica; foi além da dimensão econômica, permeando outras esferas da vida social, como política, religião e cultura, constituindo, assim, um importante elemento da identidade presente na memória daqueles que de alguma forma estiveram relacionados à Fábrica, direta ou indiretamente. Caso a preservação e a proteção legal (na qual o tombamento é um instrumento fundamental) sejam os caminhos escolhidos, o trabalho não pode parar aí, é preciso adotar medidas de salvaguarda que contribuam de maneira efetiva para a preservação da memória — o que passa pela reabilitação das estruturas físicas, conferindo-lhes um novo uso.

Por fim, cabe uma reflexão crítica a respeito do papel social da Arqueologia. O impulso inicial da pesquisa era identificar múltiplas versões para a construção de uma síntese sobre a trajetória histórica da Itaunense e da paisagem representada pelos significados atribuídos às suas estruturas, incluindo a versão de agentes históricos representantes de diversas classes e grupos sociais. Entretanto, não foi esta a realidade encontrada. Todas as fontes pesquisadas convergiam para um discurso hegemônico. O texto estabelecido se caracteriza pelo forte enfoque na história da elite e de suas ações, pela aparência de harmonia entre a fábrica, os dirigentes, os operários, seus familiares e a cidade de forma geral. Esta é a história presente nas fontes levantadas. É a representação da realidade feita por aqueles que produziram as narrativas que integram esta história, o que querem que seja divulgado a respeito desta realidade.

Diante da síntese das narrativas orais e escritas, coloca-se a seguinte questão: por que uma fábrica instalada no interior do Brasil no início do século XX e que, portanto, possuía todas as condições para ocorrência de conflitos e contradições, é representada como tendo sido absolutamente harmônica? Não havia conflitos ou eles foram deixados à margem da história oficial?

Uma das consequências das ações do capitalista é minar os envolvidos de um senso crítico acerca da própria condição para que não atuem em prol de interesses próprios, como conquistar melhores condições de trabalho. Não se pretende aqui questionar a índole dos dirigentes da Itaunense, mas sim analisar, a partir do caso específico da empresa, o próprio sistema capitalista. A Itaunense possuía mecanismos de regulação da vida social, a exemplo da sirene, que, para o operário, marcava o tempo do trabalho e do não-trabalho, mas também se incorporava ao cotidiano da cidade como um todo. A empresa também orientava os momentos de lazer, seja pelas celebrações que organizava, pelos espaços destinados às práticas recreativas que possuía. Detinha influência nos meios de comunicação, rádio e jornais. Praticava diversas ações sociais nas esferas da saúde, educação, infraestrutura urbana, abastecimento de água, etc. Todas estas ações, em conjunto, criaram uma relação de dependência dos trabalhadores, e, em última instância da população em geral, em relação à fábrica.

Durante as entrevistas, diante da indagação sobre como era o cotidiano de trabalho dentro da fábrica, invariavelmente as respostas contemplavam a dimensão da hierarquia: quem eram os superiores diretos, os superintendentes e o quanto estas pessoas eram boas e caridosas. Mesmo quando eram instados a falar de si mesmos, menções aos dirigentes e proprietários da fábrica eram feitas, demonstrando um forte sentimento de admiração por estas figuras. Este é o resultado da assimilação da ideologia da classe dominante.

Diante das limitações encontradas na tentativa de dar voz às classes subalternas que decorre da natureza do sistema capitalista, esta pesquisa se encerra com a constatação da necessidade de dar retorno social prático que contribua para a real superação das contradições inerentes ao trabalho assalariado no contexto capitalista.

Estas questões constituem o ponto de partida para aprofundamento em um estudo socialmente significativo no futuro, que possibilite conhecer a dimensão do trabalho para fundamentar sua transformação em situações reais.

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