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Época Brasil 1097

O cotidiano do medo em Itabira, terra de Drummond

Berço da Vale e cercada por 15 barragens, cidade aprende a conviver com o perigo
Desde a década de 40, com a fundação da Vale, Itabira depende da exploração de minério de ferro. Hoje, cerca de 14 mil dos 100 mil habitantes da cidade vivem em áreas que podem ser atingidas rapidamente pela lama das barragens. Foto: Michel Filho / Agência O Globo
Desde a década de 40, com a fundação da Vale, Itabira depende da exploração de minério de ferro. Hoje, cerca de 14 mil dos 100 mil habitantes da cidade vivem em áreas que podem ser atingidas rapidamente pela lama das barragens. Foto: Michel Filho / Agência O Globo

Nas dependências da Vale em Itabira, Minas Gerais, na manhã de um sábado de junho, uma representante da mineradora responsável pela relação com a comunidade tentava amenizar os olhares apreensivos dos visitantes: “Os pontos de encontro e as rotas de fuga servem para as barragens, foram feitos para isso, mas também servem para outras situações, como enchentes”, disse. “Começamos a falar de barragem, mas se abrirmos a cabeça veremos que valem para todas as situações.”

Abusando de expressões como ZAS, construção a jusante e a montante e piezômetro, três empregados da empresa apresentavam um plano emergencial para moradores de um dos bairros na área de risco. Apenas 19 pessoas se inscreveram para o encontro, a maioria gente da roça e pouco alfabetizada que vive ao lado de Itabiruçu, a barragem de rejeitos de minério de ferro em expansão que se transformará nos próximos anos na maior do Brasil.

“Caso aconteça o evento, o foco são as pessoas”, afirmou o responsável pela área geotécnica, outro participante da reunião.

Evento foi a palavra utilizada pelos funcionários para descrever a possibilidade de uma nova tragédia como as que aconteceram em Mariana e Brumadinho, respectivamente o pior desastre ambiental e o pior acidente coletivo de trabalho da história do país.

Milhares de sinalizações estão sendo implantadas em Itabira, dentro de um plano de emergência que inclui a instalação de novas sirenes e a realização de um simulado de acidente com a população. Foto: Lucas Ferraz / Agência O Globo
Milhares de sinalizações estão sendo implantadas em Itabira, dentro de um plano de emergência que inclui a instalação de novas sirenes e a realização de um simulado de acidente com a população. Foto: Lucas Ferraz / Agência O Globo

Berço da Vale e cercada por 15 barragens, Itabira nunca mais foi a mesma após esses “eventos”, em especial o último, em Brumadinho, que acelerou uma profunda e irreversível transformação, afetando o humor da população e mudando o cenário do município.

Os itabiranos terão de apreender a conviver com a possibilidade de um desastre incalculável, assunto nunca antes debatido séria e abertamente na cidade, nem pela empresa, nem pelo poder público.

Diante dos erros e das negligências no desastre de janeiro, a Vale foi obrigada a cumprir tardiamente a legislação e preparar a cidade para a hipotética chegada do apocalipse. Ou, como diz, agora será necessário criar uma cultura de prontidão para a emergência.

“Itabira nunca mais foi a mesma depois das tragédias de Mariana e de Brumadinho. Temerosos, seus moradores acompanham agora a expansão de Itabiruçu, que será a maior barragem do Brasil”

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A área urbana de Itabira e sua zona rural convivem com a implementação de milhares de sinalizações e rotas de fuga e a instalação de 28 sirenes importadas da Eslováquia e com características das usadas em guerra, além do cadastro de moradores e da realização de um simulado, que deverá acontecer no próximo mês, para orientar a população numa situação de emergência real.

A visita dos vizinhos a Itabiruçu faz parte da elaboração do Plano de Ação de Emergência das Barragens de Mineração, que está sendo implementado com falhas e tem recebido críticas. Os presentes eram quase todos moradores do Rio de Peixe, bairro onde existe outra barragem da empresa (menor) e que será o primeiro atingido em caso de rompimento (menos de três minutos).

Atualmente com 130 milhões de metros cúbicos de rejeitos, Itabiruçu terá capacidade, após a reforma prevista para terminar no ano que vem, de abrigar 230 milhões — cinco vezes o total que vazou de Fundão, em Mariana, em 2015.

Até lá, a maior barragem de minério de ferro da cidade — do país e do mundo, vasto mundo — continuará a ser a do Pontal, construída rente a outros bairros, muito mais populosos, da área urbana e onde um dia existiu a fazenda do pai do poeta Carlos Drummond de Andrade, o mais ilustre itabirano. Hoje ela abriga 220 milhões de metros cúbicos de lama, 18 vezes mais do que havia em Brumadinho.

­ Foto: Lucas Ferraz / Agência O Globo
­ Foto: Lucas Ferraz / Agência O Globo

Em Itabira é impossível precisar onde começa e termina a cidade e onde começa e termina a Vale. Como se diz entre os locais, trata-se de irmãs siamesas.

Cerca de 14 mil dos 100 mil habitantes vivem dentro das chamadas ZAS, as zonas de autossalvamento, definidas assim por abrigarem moradores numa área até 10 quilômetros abaixo das barragens ou que pode ser atingida pela lama em até 30 minutos. A Vale já visitou até o momento 5.174 imóveis e cadastrou 11.500 pessoas e 9.200 animais.

Quando a estrutura de Brumadinho rompeu, Itabira já preparava a expansão de sua segunda megabarragem, embora ainda não tivesse implementado um plano emergencial nem orientado a população a esse respeito. O desastre acelerou o processo, marcado por erros que assustaram ainda mais a população.

Em março, semanas após a catástrofe de Brumadinho, que fica a 159 quilômetros de Itabira, as sirenes de Itabiruçu soaram à noite, indicando o iminente rompimento. O pânico coletivo durou algumas dezenas de minutos e terminou com um pedido de desculpa da empresa, que acionou as sirenes por engano.

O falso alarme causou danos psicológicos aos moradores, sendo registrado um leve aumento no atendimento de saúde mental do município por ansiedade e dificuldades para dormir. Segundo a responsável pelo setor, a procura já se normalizou. Uma das senhoras que segue recebendo atendimento na cidade perdeu um filho na tragédia de Brumadinho.

O caso de uma criança que machucou o pé descalço durante a fuga se tornou popular após a mãe fazer um desabafo no Facebook. Edna Aparecida, moradora da Ribeira, um dos bairros na rota dos rejeitos, postou uma foto da filha na cama usando tênis — que ela se recusava a tirar para dormir, dizendo: “Mamãe, não vou tirar. E se a sirene tocar?”.

A Vale à época enfrentava outras emergências no estado, como em Barão de Cocais, cuja barragem está sendo desativada, e no distrito de Macacos, em Nova Lima.

Construção da Vale em Itabira, na década de 40. Foto: Arquivo / Agência O Globo
Construção da Vale em Itabira, na década de 40. Foto: Arquivo / Agência O Globo

Além de o histórico recente não contribuir para a credibilidade da mineradora, os itabiranos ainda convivem com o círculo das tragédias e falhas anteriores.

Muitos dos animais que estão sendo retirados de Barão de Cocais — um total de 3.100 — foram alojados em pastos e fazendas da zona rural de Itabira, a 62 quilômetros.

Um dos engenheiros responsáveis pela estrutura que rompeu em Brumadinho, preso temporariamente, foi o mesmo que atestou a segurança de Itabiruçu. No ano passado, a barragem foi denunciada ao Ministério Público por um profissional que nela trabalhou por apresentar rachaduras — segundo a mineradora, corrigidas na reforma em curso.

A Vale e a prefeitura de Itabira ressaltam que a barragem — assim como a do Pontal, ainda maior — é construída a jusante, ou seja, cresce apenas sobre si mesma, na direção da corrente dos resíduos, o que melhora a estabilidade, sendo mais segura que as de Mariana e Brumadinho, que eram construídas a montante, um modelo mais barato, que cresce por meio de degraus feitos com o próprio rejeito. A empresa tem um atestado de estabilidade, feito por uma consultoria contratada, válido até setembro.

Apesar de o prefeito Ronaldo Magalhães (PTB), confiando na palavra da mineradora, ter declarado que Itabiruçu é a “barragem mais segura do Brasil”, o Ministério Público (MP) de Minas Gerais abriu quatro investigações para apurar a segurança das barragens da cidade. Por decisão da própria Promotoria, as apurações estão sob sigilo.

Criado no início do ano, o Comitê Popular dos Atingidos pela Mineração em Itabira e Região protocolou um requerimento no MP expondo o que chamou de violações de direitos. Entre os pontos listados estão os mapas distribuídos aos moradores, sem informações básicas (não informam, por exemplo, qual das 15 barragens ameaça determinado bairro), e a falta de transparência, um problema histórico.

A expansão de Itabiruçu, aprovada pelo governo mineiro no ano passado, não foi debatida publicamente. Somente após a cobrança de um site local, o Vila de Utopia, uma reunião foi convocada pela Câmara Municipal de Itabira, mas sem poder para propor qualquer medida no projeto. Já era tarde demais.

Extração de minério da cidade, que ocupa hoje a segunda posição na produção nacional de minério de ferro, atrás apenas da Mina de Serra Norte, em Carajás, no Pará. Foto: Michel Filho / Agência O Globo
Extração de minério da cidade, que ocupa hoje a segunda posição na produção nacional de minério de ferro, atrás apenas da Mina de Serra Norte, em Carajás, no Pará. Foto: Michel Filho / Agência O Globo

“O problema é que ninguém nunca acreditou que aquelas barragens romperiam. E a verdade é que nenhuma barragem está imune a rompimento”, comentou o advogado itabirano Denes Martins da Costa Lott, especializado em Direito Ambiental. Após trabalhar 22 anos na Vale, Lott agora assessora a prefeitura de Itabira e a associação de moradores do Rio de Peixe nas discussões com a empresa e era um dos presentes em Itabiruçu no mês passado.

Laboratório da mineração no Brasil no século passado, Itabira não conseguiu criar uma alternativa econômica nas últimas décadas e ainda é extremamente dependente da atividade — que gera mais de 60% de sua receita.

Sobre a ampliação da barragem, a mineradora disse à época ser a única maneira de continuar operando no município, já que as demais estruturas estavam com a capacidade máxima. A reforma veio em boa hora para a combalida economia local, resultando em pelo menos 750 novos postos de trabalho.

Num relatório enviado à Bolsa de Nova York no ano passado, a Vale estima que a exaustão do minério na cidade ocorra em 2028 — a empresa está em operação em Itabira desde 1942, quando foi criada como estatal por Getulio Vargas. Oficialmente, ela nunca discutiu ou apresentou uma data à cidade.

Enquanto isso, na nova vida sob o plano de emergência, todos os imóveis estão sendo notificados — os que estão fora da área de risco e os que estão dentro das zonas de autossalvamento.

Numa ação compartilhada entre Vale e Defesa Civil, mais de 10 mil moradores estão sendo entrevistados. Perguntas como “Há parentes ou amigos na cidade que possam abrigar a família em caso de emergência?” fazem parte do questionário.

Entre as recomendações, estão: “a) reunir todas as pessoas que estiverem em casa; b) pegar apenas objetos pessoais que sejam de extrema importância e que caibam em uma sacola; c) deixar sua residência seguindo pelas rotas de fuga até o ponto de encontro mais próximo”.

A Vale ainda entregou uma pasta de plástico aos moradores para que eles guardem documentos pessoais e escrituras dos imóveis, com a orientação de deixá-la vedada e em local de fácil acesso caso seja necessário abandonar a propriedade imediatamente. Como se viu nas tragédias de Mariana e Brumadinho, a ausência de documentos pode se tornar um grande problema na hora de discutir as indenizações.

“Itabira não conseguiu criar uma alternativa econômica nas últimas décadas e ainda depende da extração de minério de ferro, que gera mais de 60% de sua receita”

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Acompanhado pela mulher, o octogenário Antônio Heleno da Cunha não precisou caminhar muito para chegar ao ponto mais alto de Itabiruçu. Levado até lá no carro de um funcionário da Vale, ele finalmente quebrou o silêncio da primeira hora e meia de apresentação, no auditório da empresa.

“Ali ficava a fazenda de papai”, apontou com sua bengala na direção do, agora, imenso lago com água e descarte da mineração. Nascido e criado na região, onde sua família ainda tem terras, é ali que ele espera morrer.

Vizinho da barragem e um dos mais velhos, ele acompanhou a transformação na área nos últimos 70 anos: viu o fim do ciclo das fazendas, o nascimento e a expansão da empresa e, por fim, a construção de Itabiruçu, a partir dos anos 80. A Vale criou na área, pouco depois, um parque ecológico aproveitando a então abundante Mata Atlântica, o que por muitos anos escondeu a expansão dos rejeitos. Nos anos 90 o parque era aberto para passeios e tinha animais silvestres, como onças. Nada daquele tempo sobrou, exceto uma parte pequena da mata.

“O problema é a falta de responsabilidade e de comprometimento da empresa”, reclamou José Maria Gomes, sobrinho de Cunha e ex-empregado da Vale, também presente à visita. “Gosto da empresa, trabalhei lá por anos, mas ela precisa tratar as coisas de forma mais séria.”

Nascido na área que está abaixo da barragem, Gomes criticou a falta de transparência em relação às medidas de segurança, ponto questionado num documento que ele entregou à mineradora, em nome dos moradores do Rio de Peixe, com uma série de dúvidas sobre os procedimentos adotados e o uso de aparelhos como o piezômetro, que mede a pressão da água no solo.

Entre as falhas expostas estão as placas da rota de fuga, como duas instaladas na saída da estrada de terra em que fica a casa de Cunha, que apontam para duas direções diferentes (uma delas na direção da própria barragem).

“Nós dependemos de vocês”, declarou a responsável pelo relacionamento da mineradora com a comunidade, pedindo maior envolvimento dos moradores. Passados mais de 20 dias da visita, nenhuma resposta foi dada aos questionamentos — 135 moradores do bairro foram cadastrados, enquanto quatro famílias recusaram qualquer contato com a Vale e a Defesa Civil.

No livro Maquinação do mundo , em que analisa a relação entre a poesia de Drummond e a mineração em sua cidade natal, publicado em 2018, José Miguel Wisnik descreve os impactos da atividade em Itabira no último século e a condescendência dos Poderes municipal, estadual e federal com a mineradora, que “converte a cidade num território mecanizado de exploração-exportação”. A terra do poeta e da Vale continua sendo um caso exemplar nessa relação.

O programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal, financiou centenas de apartamentos num bairro da periferia sem avisar aos compradores e futuros moradores que a região estava dentro de uma zona de autossalvamento — será atingida pela lama em 5 a 7 minutos se houver um rompimento em Itabiruçu. Desvalorizados, muitos dos imóveis estão sendo desocupados.

Apesar da permanente situação de emergência, a cidade não para de crescer em direção às áreas de risco. Uma nova avenida — que terá quase 2 quilômetros e se chamará Machado de Assis — começou a ser construída em fevereiro pela prefeitura dentro da zona de autossalvamento. A administração argumenta que a obra é necessária para uma região que concentra 40% da população. “O município não pode paralisar as ações de desenvolvimento por causa de barragens”, afirmou em nota.

A empresa também terá novos desafios para além de manter os rejeitos em segurança. Na Mina de Conceição, ao lado da estrutura de Itabiruçu, existe outra barragem — homônima da mina e com 35 milhões de metros cúbicos de rejeitos — que está acima da área administrativa da Vale, falha grave que se mostrou fatal na Mina do Feijão, em Brumadinho. Logo abaixo dos limites da empresa, nessa área, fica o bairro mais nobre da cidade, Vila Técnica da Conceição, ocupado principalmente por médicos, engenheiros e diretores da mineradora.

Estátua de Carlos Drummond de Andrade no memorial dedicado ao poeta em Itabira. Numa das paredes da construção projetada por Oscar Niemeyer, estão os versos de “Confidências do Itabirano”: “...Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!” Foto: Marcelo Carnaval / Agência O Globo
Estátua de Carlos Drummond de Andrade no memorial dedicado ao poeta em Itabira. Numa das paredes da construção projetada por Oscar Niemeyer, estão os versos de “Confidências do Itabirano”: “...Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!” Foto: Marcelo Carnaval / Agência O Globo

A Vale deverá mudar sua organização interna para retirar os trabalhadores da rota da lama ou até mesmo encerrar parte da operação ali, mas até agora não há tratativa sobre os moradores — do bairro nobre ou dos muitos outros. A empresa nada comentou a respeito, mas está fora de cogitação desapropriar 14 mil pessoas.

Outro desafio será a reutilização dos rejeitos do minério de ferro, assunto ainda novo para a indústria da mineração.

Aproveitando um cochilo da Vale, um geólogo local conseguiu que sua pequena empresa obtivesse na Agência Nacional de Mineração o direito de pesquisar parte da barragem de Itabiruçu. O objetivo é comprovar a viabilidade dos recursos minerais da área. Como se trata de um minério que voltou a integrar o subsolo, ele pertence novamente à União, argumento vencedor na primeira contenda judicial entre as duas partes.

A Vale correu para garantir o direito de pesquisa nas demais barragens, como a do Pontal, que, por ser antiga, pode ter rejeitos com até 40% de minério de ferro, o mesmo percentual retirado atualmente das minas itabiranas. Se se mostrar viável, o reaproveitamento vai ajudar a mineradora a desativar algumas das estruturas de rejeitos.

Por enquanto não há nada muito claro, a não ser a necessidade de se acostumar a viver numa cidade que parece estar à beira do colapso.

Numa crônica de 1933 intitulada “Vila de Utopia” — que inspirou o site itabirano —, Drummond fez um relato pesaroso da cidade em que questiona a paralisia local diante do poder do minério. Segundo ele, Itabira não avança nem recua, é paralítica, mas é dessa paralisia que vem sua força e permanência.

“Tudo aqui é inerte, indestrutível e silencioso. A cidade parece encantada. E de fato o é. Acordará algum dia?”